terça-feira, 21 de novembro de 2017

AUTOFAC - Philip K. Dick



AUTOFAC
(originalmente publicado em Novembro de 1955 na revista Galaxy Science Fiction.)

I
A tensão se fixara nos três homens que aguardavam fumando e andando de um lado para o outro, chutando a esmo as ervas daninhas que cresciam ao lado da estrada. O sol quente do meio do dia descera sobre os campos castanhos, sobre as fileiras de casas, e a distante linha de montanhas a oeste.

— Tá quase na hora — disse Earl Ferine esfregando suas mãos magras. — Ele varia de acordo com
a carga, meio segundo para cada meio quilograma adicional.

Morrison respondeu amargo:

— Como você consegue calcular isso? Vamos só fingir que está atrasado.

O terceiro homem não disse nada. O'Neill era de fora; não conhecia Ferine ou Morrison o bastante para discutir com eles. Em vez disso se agachou e ajeitou os documentos encaixados em sua prancheta de alumínio.
No sol ardente, os braços de O'Neill estavam bronzeados, peludos, brilhando com o suor, cabelos grisalhos emaranhados, óculos com aro de chifre. Era bem mais velho do que os outros dois.
Entre seus dedos, uma bela caneta cintilante, metálica e eficiente.

— O que está escrevendo? — Ferine resmungou.

— Estou definindo o procedimento que vamos utilizar — O'Neill disse suavemente. — Melhor sistematizá-lo agora, em vez de agir aleatoriamente. Queremos saber o que fizemos e o que não funcionou. Caso contrário, iremos ficar andando em círculos. O problema que temos aqui é de comunicação, é como eu vejo.

— Comunicação — Morrison concordou em sua voz profunda. — Sim, não entramos em contato
com a maldita coisa. Ela vem, deixa a carga e continua, não há contato entre nós.

— É uma máquina — Ferine disse sem entusiasmo. — Está morta, cega e surda.

— Mas está em contato com o mundo exterior — apontou O'Neill. — Tem que haver alguma
maneira de chegar até ela. Sinais semânticos específicos são significativos para ela... Tudo o que temos a fazer é encontrá-los. Redescobrí-los, na verdade. Talvez uma meia dúzia de bilhões de possibilidades.
Um ruído baixo interrompeu os três homens. Olharam para a estrada, cautelosos e alertas.
Chegara a hora.

— Ai vem — disse Ferine. — Ok, sabidão, vejamos você trabalha.

O caminhão era enorme, roncando sob sua carga bem embalada. Em muitos aspectos lembrava
veículos convencionais de transporte, mas com uma exceção, não havia cabine para o motorista.
A superfície horizontal era uma plataforma de carga, e a parte que normalmente teria os faróis e a grade do radiador, era uma massa de receptores fibrosos e esponjosos, o aparato sensorial da extensão utilitária automotiva.
Consciente dos três homens, o caminhão desacelerou, trocou as marchas e acionou os freios de emergência parando próximo.
Um breve instante passou quando os relés entraram em ação; então uma parte do carregamento desceu pela rampa inclinada e uma cascata de caixas pesadas foi derramada na estrada.
Junto com os objetos voou uma folha de inventário detalhada.

— Vocês sabem o que fazer — O'Neill disse rapidamente. — Apressem-se antes que ele vá embora.

Os três homens agarraram os caixas e rasgaram a coberta protetora delas. Objetos brilhavam; um microscópio binocular, um rádio portátil, montões de pratos plásticos, suprimentos médicos, lâminas de barbear, roupas, alimentos. A maior parte da remessa, como de costume, era de comida.
Os três homens começaram sistematicamente a esmagar objetos. Em alguns minutos, não havia nada além de um caos de detritos espalhados entre eles.

— É isso — O'Neill ofegou recuando. Procurou sua planilha. — Agora vamos ver o que ele faz.
O caminhão começou a se afastar, mas abruptamente parou e recuou em direção a eles. Os receptores haviam notado o fato de que os três homens havia destruido a carga. Ele girou em meio a um terreno vazio e direcionou seus receptores na direção deles. Sua antena estendeu-se para o alto, começara a se comunicar com a fábrica.

Instruções estavam à caminho.
Uma segunda carga idêntica foi empurrada para fora do caminhão à beira da estrada.

— Falhamos — Ferine gemeu ao ver a folha ser cuspida após a nova carga. — Destruímos tudo por nada.

— E agora? — Morrison perguntou a O'Neill. — Qual é a próxima estratégia?

— Me dê uma mão — O'Neill pegou uma caixa e arrastou-a de volta ao caminhão. Deslizando o
cartonado na plataforma, virou-se. Os outros dois homens seguiram desajeitadamente seus movimentos. Colocaram a carga de volta no caminhão. À medida que o caminhão começava a mover-se, a última caixa quadrada estava novamente no lugar.

O caminhão hesitou. Seus receptores registraram o retorno de sua carga. De dentro dele veio um zumbido.

— Isso vai deixá-lo louco — comentou O'Neill suando. — Ele realizou a operação e não conseguiu nada.

O caminhão fez um movimento curto, então girou propositalmente ao redor e, em um borrão de velocidade, novamente despejou a carga na estrada.

— Peguem a carga! — O'Neill gritou.

Os três homens agarraram os caixas e recarregaram o caminhão febrilmente. Mas, tão rápido quanto as caixas eram empurradas para a área horizontal, o caminhão inclinava a plataforma do lado oposto e descarregava na estrada.

— Não adianta — disse Morrison respirando com dificuldade. — É impossível!

— Estamos ferrados — Ferine ofegou — como sempre. Nós seres humanos perdemos.

O caminhão considerava calmamente com seus receptores impassíveis.
Estava fazendo seu trabalho.

A rede de fábricas automáticas AUTOFAC, estava realizando consistentemente a tarefa que lhe fora imposta cinco anos antes, nos primeiros dias do chamado Conflito Global.

— Lá vai ele — observou Morrison desanimado. A antena do caminhão havia baixado; engatou a marcha lenta e soltou o freio de estacionamento.

— Uma última tentativa — disse O'Neill pegando uma das caixas e abrindo-a. Tirou de dentro um tanque de leite de dez litros e desenroscou a tampa. — Eu sei que parece tolice...

— Isso é absurdo — protestou Ferine. Relutante ele encontrou um copo entre os destroços
e mergulhou no leite. — É um jogo infantil.

O caminhão fez uma pausa para observá-los.

— Vamos, — O'Neill ordenou bruscamente — façam exatamente do jeito que combinamos.
Os três beberam rapidamente do tanque de leite, visivelmente permitindo que o leite derramasse
descendo o queixo; não havia que confundir o que estavam fazendo.

Conforme planejado, O'Neill foi o primeiro. Seu rosto se torcendo de repulsa, jogou o copo longe e cuspiu o leite na estrada.

— Pelo amor de Deus! — Gritou engasgando.

Os outros dois fizeram o mesmo, cuspindo e xingando alto, derrubaram o tanque de leite
e olharam acusadoramente para o caminhão.

— Não está bom! — Morrison rugiu.

Curioso, o caminhão se voltou lentamente. Sinapses eletrônicas clicaram e zumbiram, respondendo a situação. Sua antena se elevou como um mastro.

— Acho que conseguimos — disse O'Neill tremendo.

Enquanto o caminhão observava ele arrastou um segundo tanque de leite, desenroscou a tampa e provou o conteúdo. — O mesmo! — Gritou para o caminhão. — Está ruim!

Do caminhão saiu um pequeno cilindro de metal, que caiu aos pés de Morrison.
Ele rapidamente abriu-o.

NATUREZA DO DEFEITO

As folhas de instruções listavam possíveis defeitos, com um local para indicar a deficiência do produto.

— O que vou marcar? — Morrison perguntou. — Contaminado? Bacteria? Podre? Rançoso? Incorretamente rotulado? Partido? Esmagado? Rachado? Dobrado? Sujo?

Pensando rapidamente O'Neill respondeu:

— Não marque nenhum deles. A fábrica, sem dúvida está preparada para testar uma nova amostra.

Ele fará sua própria análise e depois nos ignorará.
Seu rosto brilhava frenético quando surgiu a inspiração.

— Escreva nesse espaço em branco no final. É um espaço para dados adicionais.

— Escrever o que?

O'Neill disse: — Escreva, o produto está chiado.

— O que é isso?

— Escreva! É um erro semântico... a fábrica não conseguirá entender. Talvez consigamos bloqueá-lo.
Com a caneta de O'Neill, Morrison escreveu cuidadosamente que o leite estava chiado. Balançando a cabeça, fechou o cilindro e devoldeu-o para o caminhão, que começou a afastar-se. Outro cilindro saltou do compartimento, o caminhão partiu apressadamente, deixando o cilindro no chão.
O'Neill abriu e levantou o papel para os outros verem.

REPRESENTANTES DE FÁBRICA SERÃO ENVIADOS.
ESTEJAM PREPARADOS PARA FORNECER DADOS COMPLETOS
SOBRE DEFICIÊNCIA DO PRODUTO.

Por um momento, os três homens ficaram em silêncio, então Ferine começou a rir.

— Nós conseguimos. Nós fizemos ele se comunicar.

— Nós certamente conseguimos — O'Neill concordou. — Nunca ouviu falar de um produto “chiado”.

Na base das montanhas se via o vasto cubo metálico da fábrica de Kansas City. Sua superfície fora corroída, pintada de radiação, ferida pelos cinco anos de guerra. A maior parte da fábrica estava enterrada, subterrânea, apenas seus estágios de entrada e saída são visíveis. O caminhão era um espectro manchado em alta velocidade em direção à extensão de metal preto. Uma abertura surgiu na superfície uniforme e o caminhão mergulhou e desapareceu lá dentro. A entrada se fechou.

— Agora é que o trabalho de verdade começa — disse O'Neill. -Agora temos que convencê-lo a encerrar as operações... a se desligar.

II
Judith O'Neill serviu café preto para as pessoas sentadas na sua sala de estar.
Seu marido falava enquanto os outros ouviam.
O'Neill era praticamente uma autoridade no sistema AUTOFAC. Em sua própria área, na região de Chicago, ele havia desativado a cerca protetora da fábrica tempo suficiente para fugir com fitas de dados. A fábrica, claro, construíu imediatamente uma defesa melhor, mas ele mostrou que as fábricas não eram infalíveis.

— O Instituto de Cibernética Aplicada — explicava O'Neill — tinha controle total sobre a rede. Culpe a guerra. Culpe o grande barulho ao longo das linhas de comunicação. Em qualquer caso, o Instituto não transmitiu as informações para as fábricas, a notícia de que a guerra acabara e de que estávamos prontos para retomar o controle das operações industriais.

— E enquanto isso — Morrison acrescentou amargamente — a maldita rede se expande e consome mais de nossos recursos naturais o tempo todo.

— Tenho a sensação — disse Judith — que se eu pissasse forte o bastante, caíria dentro de um túnel da fábrica. Eles devem ter minas por toda parte agora.

— Não há alguma ordem limitante? — Ferine perguntou nervoso. — Elas foram configuradas para se expandir indefinidamente?

— Cada fábrica está limitada à sua própria área operacional — respondeu O'Neill — mas a rede é ilimitada. Pode continuar a se apoderar de nossos recursos para sempre. O Instituto decidiu que isso teria alta prioridade; nós, meras pessoas, viríamos em segundo lugar.

— Será que sobrará algo para nós? — Morrison quis saber.

— Não, a menos que possamos parar as operações da rede. Suas equipes exploratórias estão fora o tempo todo, de todas as fábricas, procurando por matéria-prima.

— O que aconteceria se os túneis de duas fábricas se cruzassem?
O'Neill encolheu os ombros.

— Normalmente isso não aconteceria. Cada fábrica tem sua própria seção especial do nosso planeta, sua própria área privada para seu uso exclusivo.

— Mas pode acontecer.

— Bem, eles querem matéria-prima, enquanto houver algo, eles vão procurar.

O'Neill refletiu sobre a ideia com interesse.

— É algo a considerar. Eu suponho que as coisas ficam cada vez mais escassas...

Parou de falar.
Uma figura entrara na sala e ficou silenciosamente à porta, examinando todos eles.
Nas sombras a figura parecia quase humana. Por um breve momento O'Neill pensou ser alguém atrasado para a reunião. Então, à medida que avançava, percebeu que era um quasehumano, um chassi bípede vertical funcional, com receptores de dados montados no topo, ferramentas montadas em um corpo de verme que terminava sobre pinças ao chão.
Sua semelhança com um ser humano era um testemunho da eficiência da natureza sem nenhuma imitação sentimental.

O representante da fábrica começou a falar sem preâmbulo:

— Esta é uma máquina de coleta de dados, capaz de se comunicar em uma base oral. Contém aparelhos de transmissão e recepção e pode integrar fatos relevantes à sua linha de inquérito.

A voz era agradável, confiante. Obviamente uma fita gravada em algum Instituto técnico antes da guerra. Uma voz quase humana. Parecia grotesco. O'Neill podia imaginar o jovem morto, cuja voz alegre agora era emitida a partir da boca mecânica daquela máquina de aço.

— Uma palavra de cautela — continuou a voz agradável. — É inútil considerar esse receptor como sendo humano e envolvê-lo em discussões para as quais ele não está equipado. Para todos os propósitos, ela não é capaz de pensar conceitualmente; só pode trabalhar com o material já disponível.

A voz otimista clicou e uma segunda voz apareceu. Parecia com a primeira, mas agora não havia entonações ou maneirismos pessoais. A máquina estava utilizando outro padrão de discurso fonético, morto, para sua própria comunicação.

— A análise do produto rejeitado não mostrou elementos estranhos ou deterioração. O produto atende aos padrões de testes contínuos empregados em toda a rede. A rejeição apresenta, portanto, uma base que não está incluida nos testes padrões disponíveis para a rede.

— Isso mesmo — O'Neill concordou pesando suas palavras com cuidado. Continuou: — Encontramos leite de qualidade abaixo do padrão. Não o queremos. Insistimos em uma produção cuidadosa.

A máquina respondeu imediatamente:

— O conteúdo semântico do termo “chiado”, não é familiar para a rede. Não existe no vocabulário gravado. Pode apresentar uma análise em termos de elementos específicos presentes ou ausentes?

— Não — O'Neill disse cauteloso. O jogo que estava jogando era intrincado e perigoso. — Trata-se de um termo geral. Não pode ser reduzido a constituintes químicos.

— O que “chiado” significa? — Perguntou a máquina. — Você pode definir a palavra em termos alternativos com símbolos semânticos?

O'Neill hesitou. O representante tinha que ser orientado para um inquérito especial mais abrangente, para um problema que resultasse como solução o fechamento da rede. Se pudesse conduzí-lo a este ponto, poderia começar a discussão teórica...

— Chiado — afirmou — significa a condição de um produto que é fabricado quando não
existe necessidade. Isso indica na rejeição de objetos com base em que não são mais procurados.
O representante disse:

— A análise da rede mostra a necessidade de substituição pelo milho pasteurizado de alto grau nesta área. Não existe uma fonte alternativa, a rede controla todos os produtos sintéticos... do tipo mamário existente — acrescentou. — As instruções originais descrevem o leite como essencial para a dieta humana.

O'Neill estava sendo batido. A máquina estava retornando a discussão ao problema específico.
— Nós decidimos que não queremos mais leite. Nós preferimos ficar sem ele, ao menos até que possamos localizar vacas.

— Isso é contrário às fitas da rede — afirmou o representante. — Não existem vacas. Todo o leite é produzido sinteticamente.

— Então se vamos produzir de forma sintética — Morrison tentou impaciente — por que não podemos assumir as máquinas? Meu Deus, não somos crianças! Podemos tomar conta de nossas próprias vidas!
O representante da fábrica moveu-se em direção à porta.

— Até o momento que sua comunidade encontrar outras fontes de fornecimento de leite, a rede continuará a fornecer o leite. Aparelhos de análise e avaliação permanecerão nesta área, conduzindo a amostragem aleatória habitual.

Ferine gritou inútilmente: — Como podemos encontrar outras fontes? Vocês tem controlado tudo! Vocês estão à frente do show! Você diz que não estamos prontos para tomar conta, você afirma que nós não somos capazes. Como você sabe? Você não nos dá chance! Nós nunca teremos chance de prová-lo!

O'Neill estava petrificado. A máquina estava vencendo, a mente única tinha triunfado.

— Olhe — disse Ferine bloqueando-lhe o caminho. — Queremos que desligue, entende? Queremos assumir o seu equipamento e executá-lo nós mesmos. A guerra acabou. Droga, você não é necessário, não mais!

O representante da fábrica pausou brevemente na porta.

— O ciclo inoperante — disse — não está orientado a começar até que a produção da rede duplique totalmente a produção externa. E de acordo com nossa amostragem contínua, não há produção externa. Portanto, a rede continua.

Sem aviso, Morrison balançou no ar o tubo de aço à mão, acertando o ombro da máquina que explodiu. O reservatório de receptores quebrou-se, pedaços de vidro, fiação e peças minúsculas voaram para todo lado.

— É um paradoxo! — Morrison gritou. — Um jogo de palavras, um jogo semântico que eles estão jogando conosco. Os cibernéticos nos manipulam.

Ele ergueu a barra e voltou a acertá-lo selvagemente.

— Eles nos veem como um obstáculo. Estamos ferrados!

A sala se transformara num grande tumulto.

— É o único caminho — Ferine ofegou quando passou por O'Neill. — Teremos que destruí-los! Somos nós ou eles.

Agarrando uma luminária Ferine atirou no ‘rosto’ do representante da fábrica. A lâmpada e a intrincada superfície do plástico estouraram. 
Agora, todas as pessoas da sala estavam furiosamente em torno do cilindro ereto, o sentimento de impotência fervia. A máquina tombou enquanto a arrastavam.
Tremendo, O'Neill se afastou. Sua esposa pegou seu braço e levou-o para fora da sala.

— Os idiotas — disse ele abatido. — Não podem destruí-lo, só vão ensiná-los a construir mais defesas. Estão piorando tudo.

Na sala de estar chegou uma equipe de reparo da rede. As unidades mecânicas destacadas correram para o montículo de humanos, deslizando entre as pessoas e rapidamente carregaram a carcaça inerte do representante. As peças soltas foram coletadas, recolhidas e levadas. O suporte e a engrenagem de plástico localizadas. Então as unidades de resgate partiram.
Através da porta aberta veio um segundo representante da fábrica, uma duplicata exata do
primeiro. Lá fora no corredor estavam duas outras.
O atendimento seria aleatório, feito por um corpo de representantes. Como uma horda de formigas, máquinas móveis de coleta de dados tinham se espalhado pela cidade até que, por acaso, uma delas se deparou com O'Neill.

— A destruição de equipamentos móveis de coleta de dados da rede é prejudicial para os interesses humanos — o representante da fábrica informou. — A obtenção de matérias-primas se encontra perigosamente baixa; materiais básicos ainda existem e devem ser utilizados no fabrico de
bens de consumo.

O'Neill e a máquina estavam de frente um para o outro.

— Oh? — O'Neill disse suavemente. — Isso é interessante. Eu pensava se você seria mais baixo... e imaginava o quanto você estaria disposto a lutar.


Os rotores do helicóptero gemiam de forma acentuada acima da cabeça de O'Neill, ele ignorou e olhou através da janela da cabine para o chão não muito abaixo.
Entulhos e ruínas em todos os lugares. As ervas daninhas procuravam seu caminho para cima, entre colônias de insetos. Aqui e ali as colônias de ratos eram visíveis, emaranhados construídos de ossos e destroços. A radiação havia mutacionado os ratos, juntamente com a maioria dos insetos e animais.
Um pouco mais longe, O'Neill identificou um esquadrão de pássaros perseguindo um esquilo. O esquilo mergulhou em uma brecha cuidadosamente cavada na superfície da escória e os pássaros se afastaram frustrados.

— Você acha que reconstruiremos as cidades? — Morrison perguntou. — Fico doente de olhar pra isso.

— Com o tempo — O'Neill respondeu. — Assumindo é claro, que recuperaremos o controle industrial.

E assumindo que resta algo com que trabalhar. Na melhor das hipóteses, levará tempo. Teremos que deixar os assentamentos.

À direita havia uma colônia humana, magros espantalhos esfarrapados vivendo entre as ruínas do que antes era uma cidade. Alguns hectares de solo árido haviam sido limpos; os vegetais balançavam ao sol, as galinhas bicavam vagarosamente aqui e ali, um cavalo ofegante na sombra de um galpão grosseiro.

— Moradores de ruínas — O'Neill deixou escapar sombrio — longe da rede ou de qualquer fábrica.

— É culpa deles — disse Morrison com raiva. — Eles poderiam viver em um dos assentamentos.

— Essa era a sua cidade. Eles estão tentando fazer o que nós estamos tentando fazer, construir coisas novamente por conta própria. Mas eles estão começando agora, sem ferramentas ou máquinas, com as mãos nuas, juntando fragmentos de escombros. E não vai funcionar. Precisamos de máquinas. Não podemos reparar ruínas, nós temos que assumir a produção industrial.
Dirigiam-se a uma série de colinas, restos do que já havia sido uma cordilheira. Além a ferida titânica da cratera de bomba H, meio cheia de água estagnada, lodo e doença.
E além dali um brilho de movimento incessante de caminhões de transporte de minérios.

— Lá — O'Neill disse baixando o helicóptero. — Você consegue dizer de qual fábrica são?

— Todos parecem iguas pra mim — Morrison murmurou, inclinando-se para ver. — Vamos ter que esperar e segui-los, quando vierem com um carregamento.

— Se conseguirem um — corrigiu O'Neill.

A equipe de exploração da fábrica automática ignorou o zumbido do helicóptero e se concentrou em seu trabalho. À frente do caminhão principal dois tratores abrindo seu caminho até montes de entulho, sondas como penas eriçadas. Subindo o declive distante, desceram em um cobertor de cinzas que espalhavam-se sobre a escória. Os dois tratores cavaram até que somente suas antenas fossem visíveis. Então explodiram na superfície, seus trilhos zumbindo e cavando.

— O que estão procurando? — Morrison perguntou.

— Deus sabe — O'Neill folheou atentamente os papéis em sua prancheta. — Nós teremos que
analisar todas as nossas fichas de pedidos.

Abaixo deles a equipe desapareceu ficando para trás. O helicóptero passou por um
deserto de areia onde nada se movia. Um feio bosque de matagais apareceu e então, muito à direita, uma série de pequenos pontos em movimento.
Uma procissão de carrinhos de minério automáticos estava correndo sobre o terreno escaldante, uma série de caminhões de metal seguindo um ao outro.
O'Neill virou o helicóptero para eles e, alguns minutos depois, pairavam acima da própria mina.
Equipamentos de remoção tinham chegado às operações. Carrinhos vazios esperavam nas filas pacientemente. Um fluxo constante de carrinhos carregados seguia rumo ao horizonte, derrubando um pouco do minério.

— Ai vem a equipe exploradora — observou Morrison. — Você acha que talvez eles se enrosquem?
  
— Não, acho que é esperar demais. É agora! Estão procurando substâncias diferentes. Estão condicionados a ignorar um ao outro.

O primeiro dos insetos exploradores atingiu a linha de carrinhos de minério. Virou ligeiramente e
continuou a procura, os carrinhos viajavam em sua linha inexoravel como se nada tivesse acontecido.
Decepcionado, Morrison se afastou da janela.

— É inútil. É como se um não existisse para o outro.

Gradualmente a equipe exploradora se afastou da linha de carrinhos, além das operações de mineração.

— Talvez eles sejam da mesma fábrica — disse Morrison com esperança.

O'Neill apontou para as antenas visíveis nos principais equipamentos de mineração.

— Suas antenas estão viradas para um vetor diferente, então representam duas fábricas. Vai ser difícil, teremos que ser precisos ou não haverá qualquer reação.

Ele clicou no rádio. — Qualquer resultado nos registros de pedidos consolidados?
O operador colocou-o em contato com os escritórios de administração no assentamento.

— Começaram a chegar — disse Ferine. — Assim que recebemos amostragens suficientes,
tentaremos determinar quais matérias-primas que as fábricas procuram. Vai ser arriscado tentar
extrapolar a partir de produtos complexos. Pode haver uma série de elementos básicos comuns.

— O que acontecerá quando identificamos o elemento faltando? — Morrison quis saber. — O que acontecerá quando tivermos duas fábricas tangentes procurando pelo mesmo material?

— Então — disse O'Neill com severidade — começaremos a coletar o material nós mesmos, mesmo que tenhamos que derreter cada objeto nos assentamentos.

III
Na escuridão da noite um vento fraco se agitou e logo morreu. De vez em quando um roedor noturno rondava com seus sentidos hiperalertas, espiando, planejando, na busca de comida.
A área era selvagem. Não existiam assentamentos humanos por quilômetros, toda a região tinha sido aplainada e cauterizada por repetidas explosões de bombas H.
Em algum lugar na escuridão sombria, um lento gotejamento de água abriu caminho entre as escórias e as ervas daninhas, pingando do que antes havia sido um elaborado labirinto de redes de esgoto. Os canos rachados e quebrados subindo pela escuridão noturna, coberta pela vegetação rastejante. O vento criou nuvens de cinzas pretas que giraram e dançaram entre as ervas daninhas. Um enorme ganso mutante agitou-se sonolento, puxou seu casaco protetor de trapos ao seu redor e voltou a dormir.

Por um tempo não houve qualquer movimento.
Uma série de estrelas apareceu no céu acima, brilhando remotamente.
Earl Ferine estremeceu e se aconchegou mais perto do ponto de calor pulsante colocado no chão entre os três homens.

— Então...? — Morrison começou.

O'Neill não respondeu. Terminou o cigarro, esmagou-o contra um montículo de escória e tirando o isqueiro acendeu outro.
A massa de tungstênio, a isca, fora colocada uma centena de metros à frente deles.
Durante os últimos dias, as fábricas de Detroit e Pittsburgh haviam ficado sem tungstênio. E em pelo menos um setor cessou as atividades.

A pilha baixa continha ferramentas de corte de precisão, peças tiradas de interruptores elétricos, equipamentos cirúrgicos de alta qualidade, secções de ímãs, dispositivos de medição, ou seja, tungstênio de todas as fontes possíveis, reunidas febrilmente de todos os assentamentos.
Uma névoa escura estava espalhada ao redor do montículo de tungstênio.
Ocasionalmente um inseto noturno sobrevoava a pilha, atraído pelo reflexo da luz das estrelas.
O inseto batia suas asas alongadas e fúnebres contra o emaranhado de metal entrelaçado e depois se afastava para trepadeiras espessas que se erguiam dos tocos de tubos de esgoto.
— Não é um lugar muito bonito — ironizou Ferine.

— Não se engane — retrucou O'Neill. — Este é o lugar mais bonito da Terra. Este é o ponto que marca o túmulo da rede AUTOFAC. As pessoas virão aqui algum dia. Haverá uma placa aqui.

— Você está tentando manter a moral — Morrison bufou. — Você não acredita que elas estão vindo
para matar-se sobre um monte de ferramentas cirúrgicas e filamentos de lâmpadas. Provavelmente tem uma máquina no nível inferior que suga o tungstênio da rocha.

— Talvez — disse O'Neill dando uma bofetada num mosquito.

O inseto esquivou-se e depois zumbiu para irritar Ferine. Ferine acertou-o violentamente e a coisa pousou na vegetação.
Aquilo que eles vieram ver estava começando a acontecer.
O'Neill percebeu que estava olhando por vários minutos sem reconhecer isso.
O inseto de busca permaneceu absolutamente imóvel. Descansou na crista de um pequeno montículo de terra, sua extremidade anterior levemente levantada, receptores totalmente estendidos. Nenhuma atividade de nenhum tipo, nenhum sinal de vida ou consciência.
O inseto de busca perfeitamente equipado, sem desperdícios, na paisagem incendiada. Chapas pequenas e algumas poucas engrenagens. Descansou e esperou. E observou.
Estava examinando o monte de tungstênio.
A isca pronta para a primeira mordida.

— Mordeu — Ferine disse abrupto.

— O que diabos você está falando? — Morrison grunhiu e então também viu o inseto de busca.

— Jesus — sussurrou. Levantou-se. — Bem, temos um. Agora, tudo o que precisamos é uma unidade da outra fábrica. De onde você acha que é?

O'Neill localizou a antena de comunicação e rastreou seu ângulo.

— Pittsburgh, então reze por Detroit... reze como louco.

Satisfeito, o inseto de busca se separou do chão e avançou aproximando-se cautelosamente da pilha, começando uma série de manobras intrincadas, primeiro de um lado e depois de outro.
Os três homens observavam pedrificados, até que vislumbraram as antenas de sondagem de outros insetos de busca.

— Comunicação — disse O'Neill suavemente. — Como abelhas.

Agora cinco insetos de Pittsburgh estavam se aproximando da pilha de produtos de tungstênio. Receptores acenando excitadamente, aumentando o ritmo, correndo em uma explosão repentina do lado do monte até o topo. Um inseto desapareceu rapidamente e todo o monte estremeceu; o inseto estava dentro, explorando a extensão do achado.
Dez minutos depois, os primeiros carrinhos de minério de Pittsburgh apareceram.

— Droga! — O'Neill disse irritado — Eles vão pegar tudo antes de Detroit aparecer.

— Não podemos fazer nada para retardá-los? — Ferine perguntou impotente. De pé ele pegou uma rocha e a atirou no carrinho mais próximo. A rocha acertou o carrinho que continuou seu trabalho, imperturbável.

O'Neill levantou-se com fúria. Onde eles estavam? As AUTOFACs eram iguais em todos os aspectos e o local escolhido ficava exatamente à mesma distância linear de cada centro. Teoricamente as fábricas deveriam ter chegado simultaneamente. No entanto, não havia nenhum sinal de Detroit, e os últimos pedaços de tungstênio estavam sendo carregados diante de seus olhos.
Então algo passou por ele.

Ele não reconheceu, pois o objeto se movia muito rápido, como uma bala entre os emaranhados de cipós, correu pelo lado da crista da colina, e avançou pelo lado oposto. Esmagou-se diretamente contra o carrinho. Projétil e vítima destruídos em uma explosão abrupta de som.
Morrison saltou.

— Que diabos!

— É isso aí! — Ferine gritou, dançando e acenando com seus braços magros. — É Detroit!
Um segundo inseto de pesquisa de Detroit apareceu, hesitou diante da situação e, em seguida,
lançou-se furiosamente contra os carrinhos de Pittsburgh em retirada. Fragmentos de tungstênio espalhados, peças, fiação, placas quebradas, engrenagens e molas e parafusos dos dois antagonistas voaram em todas as direções.

Os carrinhos remanescentes rodavam desnorteados, um deles despejou sua carga e partiu em velocidade máxima. Um segundo seguiu-o, ainda pesado com a carga. Um inseto de Detroit alcançou-o e acertou-o diretamente. Inseto e carrinho rolaram numa trincheira rasa, uma bacia de água estagnada. Gotejando, os dois lutavam meio submersos.

— Bem — O'Neill disse inseguro — nós conseguimos. Podemos voltar para casa — suas pernas ficaram fracas. — Onde está o nosso veículo?

Quando ele olhou na direção do caminhão, algo apareceu muito longe, algo grande e
metálico, movendo-se sobre as cinzas. Era um coágulo denso de carrinhos, uma sólida extensão de transportes pesados de minério. De que fábrica seriam?
Não importava, pois além do espesso emaranhado de cipós negros, uma rede de contramedidas estava rastejando para encontrá-los. Ambas as fábricas estavam mandando suas unidades móveis. De tudo direções, os insetos deslizaram e se arrastavam, fechando-se em torno do monte remanescente de tungstênio.

A fábrica não iria permitir que a matéria-prima necessária escapasse, nem desistiria da sua descoberta. Cegamente, mecanicamente, no controle de diretrizes inflexíveis, os dois adversários trabalhavam para mostrar suas forças superiores.

— Vamos — Morrison disse com urgência. — Vamos sair daqui. O inferno está solto!

O'Neill apressadamente virou o caminhão na direção do assentamento, através da escuridão do caminho de volta. De vez em quando uma forma metálica disparava passando por eles, indo na direção oposta.

— Você viu a carga nesse último carrinho? — Ferine perguntou preocupado. — Não estava vazio.
Nem os carrinhos que o seguiram, uma procissão inteira de transportadores de suprimentos
dirigido por uma elaborada unidade de exploração de alto nível.

— Armas — disse Morrison, com os olhos arregalados de apreensão. — Estão pegando armas. Mas quem é que vai usá-las?

— Eles vão — respondeu O'Neill e indicou a sua direita. — Olhe! Isso é algo que não esperávamos.
Os representantes da fábrica estavam em ação.

Quando o caminhão entrou no assentamento de Kansas City, Judith apressou-se a encontrá-los. Agitava em sua mão uma tira de papel metálico.

— O que é isso? — O'Neill quis saber.

Sua esposa lutava para recuperar o fôlego.

— Um carrinho deixou cair e foi embora. É emocionante, Deus, a fábrica brilha com tantas luzes. Você pode vê-la a quilômetros.

O'Neill pegou o papel. Era uma mensagem da fábrica para o grupo nos assentamentos, uma tabulação das necessidades solicitadas e analisadas pela fábrica. Carimbado na lista em um tipo preto e pesado, havia sete palavras:

TODAS AS ENTREGAS SUSPENSAS ATÉ NOVAS ORDENS.

O'Neill entregou o papel para Ferine.

— Não vai haver mais bens consumíveis — disse ironicamente, um sorriso nervoso se agitando em seu rosto. — A rede está em guerra.

— Então nós fizemos isso? — Perguntou Morrison.

— Sim — afirmou O'Neill.

Agora que o conflito tinha sido provocado, sentiu um frio e crescente terror.

— Pittsburgh e Detroit vão se eliminar.


IV
A luz fria do sol da manhã atravessava a planície arruinada de cinzas metálicas pretas. A cinza ardia em um vermelho perigoso; ainda estava quente.

— Cuidado por onde anda — advertiu O'Neill agarrando o braço de sua esposa. Ele a guiou do
caminhão enferrujado ao topo de uma pilha de blocos de concreto espalhados.

Earl Ferine o seguia fazendo o caminho com cuidado, hesitante.
Atrás deles o povoado espalhado, um tabuleiro desordenado de casas, edifícios e ruas.
Uma vez que a rede de AUTOFAC encerrara seu fornecimento e manutenção, os assentamentos humanos caíram na semibarbárie. Muitas mercadorias foram destruídas e eram apenas parcialmente utilizáveis.
Fazia mais de um ano que o último caminhão da fábrica havia aparecido carregado com comida, ferramentas, roupas e peças de reparo.
Da extensão plana de concreto escuro e metal ao pé das montanhas nada mais veio de lá.
Seu desejo fora realizado, eles foram cortados, separados da rede.
Estavam por conta própria.

Ao redor do assentamento cresciam campos de trigo e hastes esfarrapadas de legumes queimados pelo sol. Ferramentas brutas artesanais foram distribuídas, artefatos primitivos marcados pelo trabalho em vários assentamentos. Os assentamentos estavam ligados apenas por carroças puxadas por cavalos e pelo telégrafo que mal funcionava.

No entanto eles conseguiram manter alguma organização. Os bens e serviços eram trocados em
uma base lenta e estável. As mercadorias básicas eram produzidas e distribuídas. A roupa que O'Neill e sua esposa e Earl Ferine usavam era grosseira e não branqueada, mas era robusta. E eles conseguiram converter alguns dos caminhões de gasolina para vapor.

— Aqui estamos — disse O'Neill. — Podemos ver daqui.

— Vale a pena? — Judith perguntou, exausta. — É um longo caminho para ver algo que todos já viram durante treze meses.

— É verdade — admitiu O'Neill, sua mão descansando brevemente no ombro da esposa. — Mas pode ser a última vez. E é isso que queremos ver.

No céu cinzento acima deles, um ponto rápido preto e opaco se moveu. No alto o ponto girou e deu voltas, seguindo um curso intrincado e cauteloso. Gradualmente seus movimentos o levaram em direção às montanhas e a escuridão dos resíduos das bombas.

— São Francisco — explicou O'Neill. — Um daqueles projéteis de longo alcance vindos da costa oeste.

— E você acha que é o último? — Ferine perguntou.

— É o único que vimos este mês — O'Neill sentou-se e começou a polvilhar pedaços secos de tabaco em um papel marrom. — E costumávamos ver centenas deles.

— Talvez eles tenham algo melhor — sugeriu Judith. Ela encontrou uma pedra lisa e sentou-se cansada. — Não?

O marido sorriu ironicamente. — Não. Eles não têm nada melhor.

Os três ficaram silenciosos. Acima deles, o ponto circundante preto aproximou-se.
Não havia sinal de atividade da superfície plana de metal e concreto, a fábrica de Kansas City
permanecia inerte. Algumas ondas de cinza quente sobre ela, debaixo de escombros. A fábrica recebera inúmeros impactos diretos. Em toda a planície, os sulcos de seus túneis subterrâneos ficaram expostos, entupidos com escombros e trepadeiras na escuridão.

— Essas malditas trepadeiras — disse Ferine pegando uma ferida em seu queixo não barbeado. — Estão tomando conta do mundo.

Aqui e ali em torno da fábrica, a ruína enferrujada no orvalho da manhã. Carrinhos, caminhões, exploradores, representantes de fábrica, porta-armas, armas, suprimentos, trens, projéteis subterrâneos, partes indiscriminadas de máquinas misturadas e fundidas em pilhas sem forma. Alguns haviam sido destruídos voltando para a fábrica; outros o foram quando emergiram totalmente carregados, pesados de equipamentos. A própria fábrica, o que restara dela, parecia ter se refugiado mais profundamente na terra. Sua superfície superior era quase visível.
Em quatro dias não houvera atividade perceptível, nenhum movimento visível de qualquer tipo.

— Está morta — disse Ferine. — Você pode ver que está morta.

O'Neill não respondeu.
Agachado, ele se sentou confortavelmente para esperar.
Em sua mente tinha certeza de que algum fragmento de automação permanecera na fábrica destruída.
O tempo diria.

Examinou o relógio de pulso; eram oito e trinta. Nos velhos tempos a fábrica começaria sua rotina diária. As procissões de caminhões e unidades móveis variadas viriam à superfície, carregadas de suprimentos, para começar suas entregas nos assentamentos humanos.
Algo se agitou à direita. Rapidamente ele voltou sua atenção para aquilo.
Um único e maltratado carrinho de recolhimento de minério estava rastejando desajeitadamente em direção à fábrica. Uma última unidade móvel danificada tentando completar sua tarefa. O carrinho estava praticamente vazio; alguns minúsculos pedaços de metal ficaram presos na caçamba. Um ladrão... O metal era de equipamentos destruídos encontrados no caminho. Contudo, como um inseto metálico cego, o carrinho aproximou-se da fábrica.
Seu progresso foi incrivelmente irritante. De vez em quando parava e estremecia, e vagava sem rumo fora do seu caminho.

— O controle não está funcionando — Judith disse com um tom de horror em sua voz. — A fábrica está tendo problemas para guiá-lo de volta.

Sim, ele já tinha visto isso. Em Nova York a fábrica perdeu completamente o transmissor de alta freqüência. Suas unidades móveis haviam se transformado em piões malucos, correndo de forma aleatória em círculos, batendo contra rochas e árvores, deslizando para dentro das escavações, caindo, finalmente tornando-se relutantemente inanimados.
O carrinho de minério atingiu a borda da planície e parou brevemente.
Acima disso, o ponto preto ainda circulava no céu.
Por um tempo, o carrinho permaneceu congelado.

— A fábrica está tentando decidir — disse Ferine. — Precisa do material, mas tem medo daquele pássaro de metal lá em cima.

Em seguida o carrinho de minério novamente retomou seu rastejar instável. Deixou o emaranhado de trepadeiras e começou a atravessar a planície aberta. Dolorosamente, com cuidado infinito, ele se dirigiu para a laje de concreto escuro e metal na base das montanhas.
O pássaro parou de circular.

— Abaixe-se! — O'Neill disse bruscamente. — São aquelas novas bombas dirigíveis.

Sua esposa e Perine se agacharam ao lado dele e os três olharam cautelosamente para o inseto de metal rastejando laboriosamente. No céu o projétil desceu em linha reta até estar diretamente sobre o carrinho. Então, sem som ou aviso, desceu em um mergulho direto.

Com as mãos em seu rosto, Judith gritou: — Eu não posso assistir! É horrível! São como animais selvagens!

— Ele não está atrás do carrinho — O'Neill observou.

À medida que o projétil caia, o carrinho aumentou a velocidade desesperadamente, correndo ruidosamente em direção à fábrica, clamando e chocalhando, uma última e inútil tentativa de alcançar a segurança. Esquecendo a ameaça acima, a fábrica ansiosa guiou a unidade diretamente para dentro dela.

Era o que o pássaro-projétil queria.
Antes que a barreira pudesse fechar, avançou paralela com o chão. À medida que o carrinho desapareceu nas profundezas da fábrica, o projétil acelerou atrás do brilho de metal que era gerado pelo carrinho. De repente a fábrica percebeu e fechou a barreira.
Grotescamente o carrinho foi pego na entrada meio fechada.
Mas não importava. O chão moveu-se, ondulou e caiu.
Uma onda de choque profundo passou por baixo dos três humanos.
Da fábrica subia uma única coluna de fumaça negra.
A superfície do concreto estava dividida como uma vagem seca. Enrugada e quebrada.
A fumaça permaneceu por um tempo vagando sem rumo com o vento da manhã.
A fábrica era um naufrágio destruído, penetrado e arrasado.
O'Neill disse firme:

— É isso. Tudo bem. Temos o que queríamos, destruímos a rede AUTOFAC. — E olhando para Ferine. — Não era o que estávamos querendo?

Eles olharam para o assentamento que estava atrás deles. Pouco restara em ordem das casas e ruas dos anos anteriores. Sem a rede, o assentamento decaía rapidamente. A limpeza original próspera se dissipara; O assentamento estava em mau estado, mal conservado.

— É claro — Perine disse hesitante. — Uma vez que entrarmos nas fábricas e começamos a configurar nossas próprias linhas de montagem...

— Sobrou alguma coisa? — Judith perguntou.

— Algo deve ter sobrado. Meu Deus... havia níveis subterrâneos por quilometros abaixo!

— Algumas dessas últimas bombas eram muito grandes — Judith observou. -Melhor do que qualquer coisa que tivemos em nossas guerras.

— Lembre-se do campo que vimos? Os posseiros das ruínas?

— Eu não estava junto — disse Ferine.

— Eram animais selvagens, comendo raízes e larvas. Afiando rochas, curtindo peles. Selvageria e bestialidade.

— Mas é isso que aquelas pessoas desejam — respondeu Ferine defensivamente.

— As pessoas? Nós queremos isso? — O'Neill indicou o assentamento. — Era isso que nós
procurávamos naquele dia que reunimos o tungstênio? Ou naquele dia que dissemos ao caminhão da fábrica que o leite era... — não conseguiu se lembrar da palavra.

— Chiado — Judith lembrou-o.

— Vamos lá — disse O'Neill. — Vamos ver o que resta da fábrica, o que ela deixou para nós.·.

Se aproximaram da fábrica arruinada no final da tarde.
Quatro caminhões com seus motores a vapor e canos de escape pingando pararam à borda do poço trilhado. Trabalhadores desceram e pisaram cautelosamente a cinza quente.

— Talvez seja muito cedo — um deles objetou.

O'Neill não tinha intenção de esperar.

— Vamos — ordenou agarrando uma lanterna e descendo pela cratera.

A barreira de proteção da fábrica de Kansas City ficava diretamente à frente. Em sua boca o carrinho de minério ainda estava pendurado, mas já não estava mais lutando. Além do carrinho, havia uma piscina ameaçadora de escuridão.

O'Neill jogou a luz pela entrada; restos de apoios irregulares ficaram visíveis.
— Precisamos descer fundo — disse ele a Morrison cautelosamente ao lado. — Se restou algo, está no fundo.

Morrison grunhiu.

— Aquelas toupeiras de Atlanta chegaram na maioria das camadas profundas.

— Até suas minas ruirem — O'Neill pisou com atenção a entrada, subiu num monte de detritos que haviam sido jogados contra a fenda de dentro, e se descobriram dentro da fábrica, uma extensão de destroços confusos sem padrão ou significado.

— Entropia — Morrison respirou fundo deprimido. — Sempre odiara. Sempre lutara contra. Partículas aleatórias em todos os lugares. Nenhum objetivo.

— Lá embaixo — O'Neill disse obstinadamente — podemos encontrar alguns enclaves selados. Eu sei que eles começaram a dividir-se em seções autônomas, tentando preservar as unidades de reparo intactas, para reformar a fábrica.
Atrás deles os operários vinham devagar. Uma seção de destroços ruiu em um banho de fragmentos quentes em cascata.

— Vocês homens voltem para os caminhões — ordenou O'Neill. — Não faz sentido colocar em perigo mais de nós do que o preciso. Se Morrison e eu não voltarmos, esqueçam-nos, não arrisquem enviar uma equipe de resgate.

Eles se foram. Morrison apontou uma rampa descendente ainda parcialmente intacta.

— Vamos descer.

Silenciosamente os dois homens passaram de um nível morto após o outro. Quilometros infinitos de ruína sombria, sem som ou atividade. Formas vagas de máquinas escurecidas, imóveis,
e equipamentos de transporte parcialmente visíveis, e armas de guerra parcialmente concluídas,
projéteis, curvados e retorcidos pela explosão final.

— Nós podemos salvar alguns desses — disse O'Neill sem acreditar. A maquinaria estava fundida, sem forma. Tudo na fábrica tinha sido fundido, sem uso.

— Uma vez que levarmos para a superfície...

— Não podemos — Morrison o contradisse amargamente. — Não temos guindastes ou guinchos — chutou uma pilha de materiais carbonizados.

— Parecia uma boa idéia — disse O'Neill enquanto os dois continuavam. — Mas agora não tenho tanta certeza.

Tinham penetrado bastante na fábrica.
O'Neill apontava a luz aqui e ali, tentando localizar seções não destruídas, porções do processo de montagem ainda intacto.
Foi Morrison quem sentiu primeiro. De repente caiu sobre as mãos e joelhos; o corpo pesado
pressionado contra o chão, e se deitou ouvindo com os olhos arregalados.

— Pelo amor de Deus...

— O que é? — O'Neill gritou. Então ele também sentiu. Debaixo deles, uma fraca e insistente vibração no chão, um zumbido constante de atividade. Eles estavam errados. A bomba-pássaro não fora totalmente bem sucedida. Abaixo, em um nível mais profundo, a fábrica ainda estava viva. Continuava com as operações limitadas.

— Sozinha — O'Neill murmurou, procurando um elevador de descida.

— Atividade autônoma, definida para continuar depois que o resto se foi. Como descemos?

O elevador de descida estava quebrado, selado por uma espessa seção de metal.
A vida debaixo de seus pés estava completamente isolada; não havia entrada.
Correndo de volta pelo caminho que vieram, O'Neill chegou à superfície e foi até o primeiro caminhão.

— Onde está o maçarico?

O precioso maçarico foi passado para ele e ele correu de volta às profundezas da fábrica arruinada onde Morrison esperava. Juntos os dois começaram a cortar freneticamente através do revestimento de metal entortado, queimando as camadas seladas da malha de proteção.

— Está funcionando — Morrison ofegou entrecerrando os olhos no brilho da tocha.

A placa caiu com um CLANG, desaparecendo no nível abaixo.
Uma luz branca explodiu em torno deles e os dois homens recuaram.
Na câmara selada a atividade furiosa cresceu e ecoou, um processo constante de correias móveis, máquinas e ferramentas zumbindo, supervisores mecânicos movendo-se rápido.
Em uma extremidade um fluxo constante de matérias-primas entravam na linha de montagem, no extremo oposto, o produto final era retirado, inspecionado e jogado em um tubo transportador.
Tudo isso ficou visível por uma fração de segundo e então a intrusão foi descoberta. Um robô apareceu. A linha de montagem de repente congelou sua atividade furiosa. As máquinas clicaram e ficaram em silêncio. Em uma extremidade, uma unidade móvel se separou e acelerou em direção ao buraco que O'Neill e Morrison tinham cortado. Ergueu uma vedação de emergência no lugar e apertou-a com força.

Um momento depois o chão estremeceu quando a atividade recomeçou.
Morrison, pálido e tremendo, virou-se para O'Neill.

— O que eles estão fazendo?

— Não são armas — disse O'Neill.

— Está sendo enviado — Morrison gesticulou convulsivamente — à superfície.

O'Neill ergueu-se tremendo.

— Podemos localizar o local?

— Eu acho que sim.

— Melhor — O'Neill apontou a lanterna para a rampa — ver que coisas são essas.


A saída do tubo de transporte estava escondida em um emaranhado de cipós e ruínas, duzentos metros além da fábrica. Em uma abertura na rocha da base das montanhas, como um bocal móvel.
De tempos em tempos uma pelota era expelida, disparada para o céu.
O bocal alterava seu ângulo de deflexão e cada pelota era lançada em uma trajetória diferente.

— Quão longe estão alcançando? — Morrison se perguntou.

— Varia, estão sendo distribuídas ao acaso — O'Neill avançou com cautela, mas o mecanismo não o detectou.

Amassada contra o alto da rocha estava uma pelota que por acidente o bocal lançara diretamente na encosta da montanha.
O'Neill subiu a rocha e pulou para perto.
A pelota era um recipiente esmagado de pequenos elementos metálicos minúsculos, difíceis de serem analisados ​​sem um microscópio.

— Não é uma arma — disse O'Neill.

O cilindro se dividira. No começo ele não sabia se devido ao impacto ou se fora deliberado.
Do interior da pelota, pedaços de metal deslizavam para fora.
Agachado O'Neill os examinou.
Os pedaços estavam em movimento. Maquinaria microscópica, menor do que formigas, menor do que a cabeça de um alfinete, trabalhando energeticamente, propositadamente construindo algo que parecia um pequeno retângulo de aço.

— Eles estão construindo — disse O'Neill impressionado.

Não muito longe dali encontrou uma pelota aberta, muito mais avançada em sua tarefa.
Pelo visto fora lançada há algum tempo.
Esta tinha feito um progresso já suficientemente grande para ser identificado.
A estrutura era familiar.

As máquinas estavam construindo uma réplica em miniatura da fábrica.

— Bem — O'Neill disse pensativamente — estamos de volta ao ponto onde começamos. Se para melhor ou para pior... Eu não sei.

— Acho que elas devem estar em toda a Terra agora — sussurrou Morrison — pousando em todos os lugares e começando a construir.

Um pensamento atingiu O'Neill.

— Talvez algumas delas sejam orientadas a escapar da gravidade do planeta. Seriam redes autênticas, AUTOFACs por todo o universo.

Atrás dele o bocal continuava a lançar suas sementes.

FIM.

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