quinta-feira, 23 de novembro de 2017

A COISA-PAI - Philip K. Dick



A COISA-PAI


— O jantar está pronto — avisou a senhora Walton. — Vá buscar seu pai e diga-lhe para lavar as mãos. O mesmo se aplica a você, jovem. — Ela carregava uma caçarola fumegante para a mesa já pronta. — Vai achá-lo na garagem.

Charles tinha só oito anos de idade, e o problema que o aturdia teria confundido até um sábio como Hillel.

— Eu... — começou a dizer.

— O que há de errado? — June Walton captou o tom desconfortável na voz de seu filho e seu peito de mãe vibrou com alarme. — O Ted não está na garagem? Pelo amor de Deus, ele estava afiando as tesouras de podar. Ele não iria nos Andersons... o jantar está praticamente na mesa.

— Ele está na garagem — disse Charles. — Mas ele está... falando consigo mesmo.

— Falando consigo mesmo! — A senhora Walton tirou o avental de plástico brilhante e o pendurou sobre a maçaneta da porta. — O Ted nunca fala consigo mesmo. Vá dizer-lhe para vir aqui.

Ela despejou café preto fervendo nas pequenas xícaras de porcelana azul e branca e começou a servir o creme de milho.

— O que há de errado com você, Charlie? Vá já!

— Não sei com qual deles falar — Charles explodiu em desespero. — Ambos se parecem!

Os dedos de June Walton escorregaram da panela de alumínio. Por um momento, o milho cremoso quase entornou perigosamente.

— Jovem... — ela começava a falar com raiva, quando Ted Walton entrou na cozinha, inalando e esfregando as mãos.

— Ahhh— disse alegremente. — Ensopado de cordeiro!

— Guisado de carne — corrigiu June. — Ted, o que você estava fazendo lá fora?

Ted jogou-se em seu lugar à mesa e desdobrou o guardanapo.

— Afiei as tesouras. Lubrificadas e afiadas. Melhor não tocá-las... elas podem cortar sua mão fora.

Ted era um homem bonito em seus trinta e poucos anos, cabelo loiro, braços fortes, mãos firmes, rosto quadrado e olhos castanhos.

— Esse guisado parece bom. Foi um dia difícil no escritório... sexta-feira, você sabe como é. As coisas se acumulam e nós temos que dar conta. Al McKinley diz que o departamento poderia lidar com mais coisas se organizássemos o horário de almoço, vai nos realocar para que alguém esteja lá o tempo todo.

Ele acenou para Charles.

— Sente-se, vamos!

A senhora Walton serviu as ervilhas.

— Ted — ela disse enquanto lentamente se sentava — tem algo te perturbando?

— Perturbando? Não, nada incomum. Apenas as coisas de sempre. Por quê?

Com dificuldade June Walton olhou para o filho. Charles estava sentando-se em seu lugar, rosto sem expressão e branco como giz.
Ele não se moveu, não desdobrou o guardanapo nem tocou seu leite.
Havia tensão no ar e ela podia sentir isso.
Charles afastou sua cadeira do pai dele, tão longe quanto possível.
Seus lábios estavam se movendo, mas ela não conseguia entender.

— O que está dizendo? — Ela exigiu saber inclinando-se para ele.

— O outro — Charles estava murmurando em voz baixa. — O outro pegou ele.

— O que você quer dizer querido? — June Walton perguntou em voz alta. — Que outro?

Ted empurrou a cadeira para trás. Uma expressão estranha apareceu em seu rosto. Desapareceu imediatamente, mas em um breve instante, o rosto de Ted Walton perdeu toda a familiaridade.Algo alienígena e frio, uma massa se torcendo. Os olhos borraram e recuaram, como um brilho sobre eles.
A aparência normal de um marido cansado e de meia idade tinha desaparecido.
E então estava de volta... ou quase.
Ted sorriu e começou a atacar o guisado e as ervilhas e o creme de milho. Riu, agitou seu café e bebeu.

Mas algo estava errado.

— O outro — murmurou Charles pálido, as mãos começando a tremer. De repente ele saltou da cadeira e se afastou gritando.— Vá embora! Saia daqui!

Ted explodiu ameaçador.

— O que deu em você? — Apontou severamente para a cadeira do menino. — Sente-se e coma seu jantar, jovem. Sua mãe não cozinhou por nada.

Charles virou-se e correu para o quarto no andar de cima.
June Walton ofegou consternada.

— O que...

Ted continuou comendo. Seu rosto era sombrio, seus olhos pesados ​​e escuros.

— Esse garoto — murmurou — vai ter que aprender uma lição. Talvez ele e eu precisemos ter uma conversinha em particular.


Charles se agachou no corredor do segundo andar ouvindo.
A Coisa-Pai subia as escadas, cada vez mais perto e mais perto.

— Charles! — Gritou ele com raiva. — Você está ai em cima?

Ele não respondeu. Voltou para o quarto e fechou a porta. Seu coração batia forte.

O pai alcançara a porta, e em um momento entraria em seu quarto.
Charlie, aterrorizado,  foi até a janela e destrancou-a. Saiu para o telhado.
Com um grunhido pulou no jardim de flores próximo da porta da frente, cambaleou e ofegou, então correu da luz que escorria pela janela, um pedaço amarelo na escuridão noturna. Encontrou a garagem, um quadrado preto contra o horizonte.

Respirando rápido, procurou no bolso pela lanterna, deslizou com cautela a porta e entrou. A garagem estava vazia. O carro estacionado. À esquerda ficava a bancada de trabalho de seu pai. Martelos e serras na parede. Nos fundos o cortador de grama,
ancinho, pá e enxada. Um tambor de querosene.
Placas de carros pregadas em todos os lugares.
O chão era de concreto e sujo, uma grande mancha de óleo no centro.
Junto da entrada havia um grande barril de lixo. Dentro do barril pilhas de jornais e revistas mofadas e úmidas. Um cheiro de bolor e velharias subiu quando Charles começou a movê-las.
Aranhas caíram no cimento, as esmagou com o pé e continuou cavando.
A visão o fez gritar.

Largou a lanterna e afastou-se.
A garagem mergulhou na penumbra instantânea.
Ajoelhou-se e por um momento indefinido, tentou na escuridão encontrar a lanterna.
Quando conseguiu girou o feixe para dentro do barril, para o buraco que ficara após remexer as revistas.Entre revistas antigas e o papelão rasgado, os restos de cortinas e lixo tirado do sótão que sua mãe havia jogado no barril com a ideia de queimar um dia.
Aquilo no fundo do barril ainda parecia um pouco de seu pai, o suficiente para ele reconhecê-lo.  A visão o deixou doente.
Se segurou no barril e fechou os olhos até que finalmente conseguisse olhar novamente. No barril estava os restos de seu pai, o verdadeiro. Pedaços que a Coisa-Pai descartara. Pedaços sem uso.
Ele pegou o ancinho e revirou os restos. Estavam secos. Rachavam com o toque do ancinho, como uma pele de cobra descartada, escamosa e quebradiça ao toque. Uma pele vazia. O interior já havia desaparecido. A parte importante. Isso fora tudo o que sobrara dele, apenas pele quebradiça no fundo do barril de lixo.Tinha comido o resto. Pegou seu interior... e o lugar de seu pai.
Um som.
Deixou cair o ancinho e correu para a porta.
A Coisa-Pai estava vindo na direção da garagem. Os sapatos esmagavam o cascalho.

— Charles! — Chamou-se com raiva. -Você está ai? Espere até eu colocar minhas mãos em você, jovem!

A forma nervosa de sua mãe estava esboçada na entrada brilhante da casa.

— Ted, não o machuque! Ele está aborrecido por alguma coisa...

— Não vou machucá-lo — gritou o pai de volta. — Eu vou ter uma pequena conversa com ele. Ele precisa aprender boas maneiras. Deixando a mesa daquele jeito...

Charles saiu da garagem. A Coisa-Pai o viu e avançou rápido na direção dele.

— Venha aqui! — Gritou.

Charles correu. Conhecia o terreno como ninguém. Alcançou a cerca, subiu, saltou para o quintal dos Andersons, passou pelo varal, descendo pelo caminho do lado da casa e para a Rua Maple.
Ficou um tempo ouvindo agachado e sem respirar.
O pai não vinha mais atrás dele. Tinha voltado pra casa.
Respirou profundamente estremecido.
Tinha que continuar em movimento. Mais cedo ou mais tarde, ele o encontraria.
Olhou para a direita e para a esquerda, certificou-se de que não estava sendo observado, e então começou a correr.




— O que você quer? — Tony Peretti perguntou rude.

Tony tinha quatorze anos. Estava sentado na mesa de carvalho na sala de jantar dos Peretti. Livros e lápis espalhados por ela, metade de um sanduíche de manteiga de amendoim e uma Coca ao lado dele.

— Você é o Walton, não?

Tony Peretti trabalhava encaixotando fogões e refrigeradores após a escola, na loja dos Johnsons no centro da cidade. Ele era grande e mal encarado. Cabelo preto, pele verde-oliva, dentes brancos.
Algumas vezes ele tinha espancado Charles, havia espancado cada criança do bairro.
Charles disse: — Olhe, Peretti. Preciso que me faça um favor.

— O que você quer? — Peretti estava irritado. — Quer um hematoma?

Olhando para seus punhos fechados, Charles explicou o que acontecera com palavras murmuradas. Quando terminou Peretti soltou um assobio baixo.

— Tá brincando...

— É verdade — assentiu. — Vou te mostrar. Venha e eu vou te mostrar.

Peretti levantou-se devagar.

— Sim. Eu quero ver!

Ele pegou sua arma de ar comprimido no quarto e os dois caminharam silenciosamente pela rua escura em direção à casa de Charles. Nenhum deles abriu a boca. Peretti sério e solene. Charles ainda atordoado com a mente vazia.
Invadiram a entrada dos Andersons, atravessaram o quintal, subiram a cerca e se abaixaram cautelosamente no quintal de Charles.
Não havia movimento e o pátio estava em silêncio. A porta da frente da casa estava fechada. Olharam através da janela da sala de estar.
Sentada no sofá estava a senhora Walton, costurando com um olhar triste e perturbado em seu rosto largo. Trabalhava sem vontade, sem interesse.
Em frente dela a Coisa-Pai na poltrona do seu pai, calçara os chinelos e lia o jornal.
A TV estava ligada no canto. Uma lata de cerveja descansava no braço da poltrona.
A Coisa-Pai agia exatamente como seu próprio pai. Tinha aprendido.

— Parece exatamente com ele — Peretti sussurrou com desconfiança. — Você não está me sacaneando, está?

Charles levou-o para a garagem e mostrou-lhe o barril do lixo.
Peretti mergulhou seus longos e bronzeados braços para baixo dele e cuidadosamente puxou os restos secos e descamados. Eles se espalharam, desdobraram, até que toda a figura do pai de Charlie foi delineada. Peretti colocou os restos no chão e juntou as peças no lugar certo. Os restos eram quase transparentes, de um amarelo âmbar como papel seco e totalmente sem vida.

— Isso é tudo que restou — disse Charles. Lágrimas brotaram em seus olhos. — A coisa ficou com o interior.

Peretti estava pálido e tremendo.

— Isso é incrível — murmurou. — Você disse que viu os dois juntos?

— Conversando. Eles pareciam exatamente iguais. Eu fugi.

Charles enxugou as lágrimas não conseguindo segurá-las por mais tempo.

— Ele o comeu. Então veio pra casa. Fez como se fosse ele, mas não é. Ele o matou e comeu seu interior.

Por um momento Peretti ficou em silêncio.

— Eu vou te contar uma coisa — disse de repente. — Eu já ouvi falar sobre esse tipo de coisa. Você tem que usar sua cabeça e não se assustar. Você não está com medo, não é?

— Não — Charles conseguiu murmurar.

— A primeira coisa que temos que fazer é descobrir como matá-lo — ele chacoalhou a arma de ar comprimido. — Não sei se isso vai funcionar. Deve ter sido muito dificil dominar seu pai. Ele era um homem grande — Peretti considerou. — Vamos sair daqui. Ele pode voltar. Dizem que é o que um assassino faz.

Deixaram a garagem. Peretti se agachou e olhou pela janela de novo.
A senhora Walton estava de pé, falava com energia. Os sons vinham filtrados.
A Coisa-Pai largou seu jornal. Estavam discutindo.

— Pelo amor de Deus! — A Coisa-Pai gritou. — Não faça nada de estúpido!

— Algo está errado — a senhora Walton gemeu. — Algo terrível. Me deixe ligar para o hospital.

— Não vai ligar para ninguém. Ele está bem. Provavelmente está brincando na rua.

— Ele nunca saiu tão tarde. Nunca desobedeceu. Estava terrivelmente chateado... e  com medo de você! Eu não o culpo. O que há de errado com você? Você está tão estranho — saiu da sala e foi para o corredor de saída. — Vou ver nos vizinhos.

A Coisa-Pai observou-a sair e então aconteceu uma coisa terrível.
Charles ofegou e até Peretti resmungou em voz baixa.

— Olhe! O que...

— Deus... — deixou escapar Peretti com olhos arregalados.

Assim que a senhora Walton se foi, a Coisa-Pai caiu na cadeira, imóvel, com a boca aberta e os olhos vazios. Sua cabeça caiu para frente, como uma boneca de pano.
Peretti se afastou da janela.

— É isso — ele sussurrou.

— O que? — Charles ficou chocado e perplexo. — Parece que alguém o desligou.

— Exatamente — Peretti assentiu devagar, sombrio e abalado. — Ele é controlado de fora.

O horror tomou conta de Charles.

— Você quer dizer, algo fora do nosso mundo?

Peretti balançou a cabeça com desgosto.

— Fora de casa! No quintal. Tem ideia de como podemos achar esta coisa?

— Não, mas eu conheço alguém que é bom em encontrar coisas. Bobby Daniels.

— O negrinho? Ele é bom?

— O melhor.

— Tudo bem. Vamos buscá-lo. Temos que encontrar o que quer que esteja lá fora.


— Deve estar perto da garagem — Peretti disse ao pequeno menino negro e de rosto fino que se agachava ao lado deles na escuridão. — Quando ele atacou o pai de Charlie ele estava na garagem. Então, vamos olhar por lá.

— Na garagem? — Perguntou Daniels.

— Perto dela. Walton já olhou lá dentro. Olhe ao redor.

Havia uma pequena cama de flores crescendo junto da garagem e um grande emaranhado de bambu e lixo entre a garagem e a parte de trás da casa.
A lua havia surgido derramando uma luz gelada sobre tudo, filtrada pelas nuvens.

— Se demorar — Daniels disse — terei que voltar pra casa. Não posso ficar acordado até muito tarde.

Ele não era mais velho do que Charles. Talvez nove.

— Tudo bem — concordou Peretti. — Então comece a procurar!

Os três se espalharam e começaram a olhar o chão com cuidado. Daniels trabalhava com uma velocidade incrível, seu corpo pequeno e magro era um borrão em movimento enquanto rastejava entre as flores, separava os talos das plantas, passava as mãos experientes sobre folhas e caules e em emaranhados de ervas daninhas. Nenhum centímetro passava sem ser verificado.
Peretti parou a procura.

— Vou ficar de guarda. A coisa pode vir e tentar nos pegar.

Colocou-se com sua arma atrás enquanto Charles e Bobby Daniels procuravam.
Charles trabalhava lentamente, estava cansado e seu corpo entorpecido. Parecia impossível o que acontecera com seu próprio pai, seu verdadeiro pai. Mas o terror o estimulou. O que aconteceria com sua mãe ou com ele? Ou todos eles? Talvez o mundo inteiro!

— Encontrei! — Daniels alertou com sua voz fina e alta. — Venham aqui, rápido!

Peretti aproximou-se cautelosamente. Charles virou a luz amarela de sua lanterna para onde Daniels estava.

O menino negro levantara uma parte da laje de concreto. No solo úmido e apodrecido, a luz brilhou em um corpo metálico, uma coisa fina e articulada com infinitas pernas torcidas e estava cavando freneticamente. Como uma formiga de um vermelho-marrom, que se mexia rapidamente diante de seus olhos. Fileiras de pernas cavucavam o solo rapidamente por baixo dela. Sua cauda se torceu furiosamente enquanto lutava para entrar no túnel que fazia.
Peretti correu para a garagem e veio com o ancinho e com ele segurou a cauda do inseto contra o chão.

— Rápido! Atire nele!

Daniels pegou a arma, apontou e atirou. O tiro rasgou a cauda do bicho, que se contorcia freneticamente, a cauda arrastada inutilmente e algumas pernas partidas. Parecia uma centopeia de uns trinta centímetros e lutava desesperadamente para escapar.

— Atire novamente! — Ordenou Peretti.

Daniels tentou. O inseto deslizou para o lado e sibilou. Sua cabeça ia para frente e para trás, retorcia-se e atacava o ancinho. Os olhos pequenos brilhavam de ódio.
Então, abruptamente, sem aviso prévio, iniciou uma frenética convulsão que os fez recuar com medo.
Algo veio através do cérebro de Charles. Um zumbido, metálico e áspero, um bilhão de fios de metal dançando e vibrando ao mesmo tempo.
Foi jogado violentamente pela força; o choque fez com que ele ficasse surdo e confuso.
Quando ficou de pé, viu que o mesmo havia acontecido com os outros.

— Se não podemos matá-lo com a arma — Peretti ofegou — podemos afogá-lo. Ou queimá-lo. Ou enfiar um alfinete em seu cérebro — ainda lutava para segurar o ancinho, para manter o inseto preso.

— Eu tenho uma jarra de formaldeído — disse Daniels sem conseguir recarregar a arma. — Como isso funciona? Não consigo...

Charles tirou a arma dele dizendo: — Deixe comifo! Vou matá-lo — e fez a mira.

O inseto atacou de novo. Seu campo de força martelou em seus ouvidos.

— Tudo bem, Charles — disse a Coisa-Pai.

Dedos poderosos agarraram-no, uma pressão paralisante em torno de seus pulsos.
A arma caiu ao chão enquanto lutava.
A Coisa-Pai o empurrou contra Peretti. O menino saltou e o inseto, livre do ancinho, deslizou triunfante para dentro do túnel.

— Você vai levar uma surra, Charles. O que há com você? Sua pobre mãe está morrendo de preocupação! — A voz calma e sem emoção era uma paródia terrível de seu pai, murmurando perto de sua orelha enquanto o empurrava implacavelmente para a garagem. Sua fria respiração soprava em seu rosto, um odor gelado e doce, como solo em decomposição. Sua força era imensa, não havia nada que ele pudesse fazer.

— Não lute comigo — disse a coisa calmamente. — Vamos até a garagem. É para o seu próprio bem, Charles.

— Você o encontrou? — Ouviu sua mãe ansiosa na porta dos fundos.

— Sim, eu o encontrei.

— O que você vai fazer?

— Vou lhe dar umas palmadas — a coisa empurrou a porta da garagem.

Na meia-luz, um sorriso fraco, sem humor e sem emoção, tocou seus lábios.

— Volte para dentro, June. Eu cuidarei disso. É minha responsabilidade. Você nunca soube como castigá-lo.

A porta dos fundos fechou relutantemente.
Recuperado, Peretti arrastou-se até sua arma.
A Coisa-Pai congelou vendo-o se levantar.

— Vão para casa, meninos...

Peretti ficou indeciso, agarrando a arma.

— Vá! — Repetiu a coisa. — Pegue seu brinquedo e vá embora!

Moveu-se lentamente em direção a Peretti, agarrando Charles com uma mão e alcançando Peretti com a outra.

— Armas de ar comprimido são proibidas na cidade, filho. Seu pai sabe que você tem uma? É lei.

Acho melhor você dar ela para mm, antes que...
Peretti atirou bem em seu olho.
A Coisa-Pai gritou e agarrou o olho ferido, largando Peretti, que tentava recarregar a arma.
A Coisa-Pai pulou sobre ele e seus poderosos dedos arrancaram a arma de suas mãos. Silenciosamente a coisa esmagou-a contra a parede da casa.
Charles saltou livre, entorpecido. Onde poderia se esconder?
A coisa estava entre ele e a casa e já estava vindo pegá-lo.
Se houvesse algum lugar onde pudesse se esconder...
O bambuzal!
Correu para lá. Os talos eram enormes e velhos, fechando-se ao redor dele com um leve sussurro.
A Coisa-Pai estava mexendo no bolso e acendeu um fósforo.

— Charles — disse. — Eu sei que você está ai em algum lugar. Não adianta se esconder. Só está dificultando as coisas.

Com seu coração batendo forte, Charles se agachou. Sujeira e detritos, ervas daninhas, lixo, papéis, caixas, roupas velhas, pranchas, latas e garrafas.
Aranhas e salamandras se contorciam ao redor dele.
O bambu balançava com o vento noturno.
Insetos e sujeira e algo mais.
Uma forma, uma forma silenciosa que crescia em meio à sujeira, como um cogumelo noturno. Uma coluna branca, uma massa que reluzia úmida à luz da lua, coberta de teias, um casulo mofado. Tinha formas vagas de braços e pernas. Uma cabeça indistinta. Ainda assim, não totalmente formada, mas ele podia dizer o que era.

Uma Coisa-Mãe, crescendo na imundície e na umidade, entre a garagem e a casa, atrás do bambu alto. Estava quase completa. Mais alguns poucos dias e chegaria à maturidade. Ainda era uma larva, branca e macia. O sol endurecia sua concha. Tornava-a forte.
E um dia sua mãe entraria na garagem e...
Atrás da Coisa-Mãe havia outra larva branca pulposa, recentemente colocada pelo inseto. Bem pequena, apenas começando sua existência.
Pode ver onde a Coisa-Pai tinha crescido. Ali. E na garagem ao lado encontrou seu pai.
Charles começou a mover-se entre a podridão, a imundície, o lixo e as larvas.
Estendeu a mão para segurar a cerca e então a recolheu.
Outra larva. Não havia visto de início.
Não era branca. Já estava escura. A suavidade da pulpa e a umidade desapareceram. Estava pronta. Ela se moveu um pouco, moveu o braço de leve.
Uma Coisa-Charles.

O bambu se separou e a mão do pai apertou firmemente o pulso do menino.

— Você fica aqui — disse. — É exatamente o lugar para você. Não se mova!

Com a outra mão a coisa rasgou os restos do casulo da Coisa-Charles.

— Eu vou ajudar... ainda está um pouco fraca.

O último pedaço cinza úmido foi retirado e a Coisa-Charles cambaleou para fora.
A Coisa-Pai abriu um caminho até Charles.

— Por aqui, venha — gritou a Coisa-Pai — eu vou segurá-lo para você! Quando se alimentar você ficará mais forte.

A boca da Coisa-Charles abria e fechava e avançava avidamente para Charles.
O menino lutou de forma selvagem, mas a imensa mão o imobilizava.

— Pare com isso, jovem! Será muito mais fácil para você se...

Então gritou e girou em convulsões, soltando Charles, e cambaleou de costas. Seu corpo se contraia violentamente, bateu contra a garagem e rolou em uma dança de agonia. Choramingou, gemeu, tentou rastejar para longe e gradualmente ficou quieto.

A Coisa-Charles permanecia silenciosa entre os detritos, o bambu e o lixo, com um rosto vazio e em branco. Por fim cessou de se mexer.
Agora havia apenas o fraco sussurro do bambu no vento noturno.
Charles levantou-se desajeitadamente.
Na entrada de cimento, Peretti e Daniels se aproximaram cautelosos.

— Não se aproxime — Daniels ordenou bruscamente. — Ainda não está morto!

— O que você fez? — Charles perguntou.

Daniels soltou o tambor do querosene com um suspiro de alívio.

— Encontramos isso na garagem. Sempre usamos querosene para matar mosquitos na Virgínia.

— Daniels derramou o querosene no túnel do inseto — explicou Peretti. — Foi ideia dele.

Daniels chutou o corpo contorcido da coisa.

— Está morto agora. Morreu assim que o inseto morreu.

— Acho que o outro também morrerá — disse Peretti.

Ele afastou o bambu para examinar as larvas que cresceiam ali entre os detritos. A Coisa-Charles não se moveu quando Peretti bateu nele com uma vara.

— Morto.

— Melhor nos certificarmos — disse Daniels sombrio pegando o tambor pesado de querosene e o arrastando até o bambuzal.

— A coisa deixou cair alguns fósforos na entrada de automóveis. Você os pega, Peretti.
Eles se olharam.

— Claro — Peretti disse suavemente.

— É melhor ligar a mangueira d’água— disse Charles. — Para garantir que o fogo não se espalhe.

— Vamos continuar — disse Peretti com impaciência já saindo.

Charles o seguiu e eles começaram a procurar os fósforos na escuridão iluminada pela lua.

FIM.

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